sexta-feira, 20 de novembro de 2009

O GRITO

Pensar a violência é encará-la nas relações de gênero, nas relações de classe, nas relações etnicorraciais e nas relações sexuais. Pensar a violência é situá-la em corpos simbólicos e materializados.

Nesta narrativa, traço um breve caminho como um ser no mundo que, ao nascer, faz uma pergunta que, aparentemente, é bastante inocente: - É homem ou mulher? Desta questão inócua a primeira violência foi enquadrar o pequeno (a) ser no sistema binário, daí a primeira exclusão é do ser hermafrodita. Ainda, neste mundo carregado de uma violência que marca os corpos, percorremos ainda a primeira questão: É homem ou mulher? Daí nossos destinos são traçados, forjados, encapsulados em cores, em nomes, em brinquedos, em esportes, em profissões, em amores, em casamento.

A minha cor é rosa, meu nome é Maria, meu brinquedo é uma boneca, meu esporte é balé, meu projeto é um marido e ter filhos, minha profissão é desvalorizada. É tudo tão perfeito, dizem que me apresento como: delicada, cuidadosa, silenciosa, moderada, jeitosa, virtuosa, sonhadora, dedicada... Sou mulher, branca, tenho um irmão, sou classe média, mas não tenho direito ao voto, não tenho direito ao meu corpo, não tenho direito aos estudos, e o meu marido me obriga a fazer sexo. E daí ouviu-se um grito de dor: Sou MULHER: tenho direito ao voto, tenho direito ao meu corpo, tenho direito ao aborto.

Ainda como ser no mundo, a mesma pergunta segue sendo feita: É homem ou mulher? A minha cor é rosa, meu nome é Maria, não tenho uma boneca, nem profissão, desde cedo cuido dos meus irmãos, e minha mãe vive na rua trabalhando... É tudo tão diferente, escravizaram o meu povo, fabricaram que sou trabalhadora, fogosa, fedorenta... Sou mulher, preta, não branca, tenho vários irmãos, moro na favela, sou empregada doméstica, meu patrão deseja me violentar, meu marido imita o meu patrão. E daí ouviu-se um grito de dor: Somos Mulheres Negras: tenho direito aos estudos, tenho direito a minha ancestralidade religiosa, tenho direito ao meu corpo.

Mais uma vez a pergunta se repete, no ato do nascimento: É homem ou mulher? A minha cor é rosa, meu nome é Maria, uso vestido... É tudo tão diferente, não gosto de bonecas, não gosto de vestidos, e daí disseram que sou moleque macho, sapatão, caminhoneira, viciosa, viro jacaré. Desta forma, não sou mulher, não faço o trabalho doméstico para os homens, não tenho desejo, sou levada pelo vício. E daí ouviu-se um grito de dor: Somos Mulheres Lésbicas, tenho direito ao sexo, tenho direito ao trabalho, tenho direito a minha escolha, uma vez que todas nós somos forçosamente heterossexuais.

E por ser mulher não essencializada: Tenho Direito ao meu Desejo, à minha Dignidade, ao meu Corpo, ao meu Prazer, a minha Ancestralidade, de Ser Inteira, de Reinventar-me, ao meu TRABALHO.

Nesta edição da Campanha 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra as Mulheres, escolhemos o mundo do trabalho para percorremos as três formas de violência expressa neste breve relato: a misoginia, o racismo e a lesbofobia. Entendemos que a emancipação feminina ocorre via mundo do trabalho, muito embora sejamos críticas à tese que unifica a idéia de que é simplesmente pelo combate à desigualdade de classe que chegaríamos a alcançar o mundo ideal.

Somos conscientes de que a matriz capitalista apropria-se e alimenta-se da heteronormatividade presunçosa, do patriarcado e do racismo. Mas também somos conscientes de que as mulheres devem reivindicar o seu espaço no mundo do trabalho, e saber que neste mundo do trabalho, elas também serão fatalmente acometidas por todas estas formas de violência, às vezes veladas, disfarçadas, cinicamente ironizadas, mas sempre materializadas e expressas por corpos masculinos e, infelizmente, também por corpos femininos.

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